sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Ponta Delgada (Açores) - Inishturk (Irlanda)

Ao longe, os contornos da ilha desaparecem lentamente com o final do dia.
Às 20h começa o meu turno de 3h ao leme. O primeiro pôr-do-sol é meu!
Enquanto nos afastamos, pequenas luzes acompanham-nos pela noite.

Começo a sentir a ansiedade de me afastar de um porto de abrigo. É normal.

O mar e o vento estão de feição e as horas passam tranquilas. É lua nova e o céu estrelado faz-me companhia. É tempo de relaxar e começar a absorver "isto" onde me meti.

Com a rotação das vigias a cada 6 horas, calha-me também o primeiro nascer-do-sol...

Durante os primeiros dias é tempo de me ir acostumando a esta dança entre o mar e o veleiro. Por vezes o par parece descoordenado nos passos e faz-me sentir apreensivo no sobe e desce que nem sempre deixa o sono vir.

Com o vento a soprar mais forte há que aproveitar e abrem-se as velas... mas isto significa que o barco vai em mais esforço e o por vezes o desconforto das inclinações atingidas não compensa a velocidade e milhas que ganhamos (penso eu...)

Nas horas solitárias de vigia e com o afastar da costa, algumas apreensões teimam em reclamar um lugar cativo... Um contentor perdido! um tronco! uma baleia! mau tempo! uma colisão com outro barco!... tanto que pode acontecer!

O mar algo agitado e um céu cinzento não ajudam a acalmar as primeiras impressões, mas agora não há volta a dar, é "ir em frente" e aproveitar.

Alguns dias depois de partirmos acordamos com um sol resplandecente, um mar tranquilo e vento q.b. para velejar a um ritmo tranquilo. Depois de estes dias sem muita socialização (6h sabem a pouco para repôr as energias e emoções de 3h de turno concentrado) sabe bem partilhar algumas horas na companhia uns dos outros. Um banho de água salgada deixa-nos a todos mais frescos. Mas uma surpresa estava reservada para esse dia.

No mar são normais os encontros com animais curiosos - aves, peixes, golfinhos, etc. Uns, mais que outros, aproximam-se e espreitam de perto. Alguns desaparecem tão depressa como chegam, outros, como as aves, acompanham-nos durante muitas milhas.

O convívio estava a saber bem durante a vigia marcada pelo sol forte. De repente, à ré, um sopro sonoro ouve-se muito perto!

Uma baleia! Encontrou-nos no meio do azul e segue-nos curiosa.

De um lado e de outro do barco, vai aparecendo, respirando tranquila.

Se por vezes se afasta algumas dezenas de metros, logo se aproxima outra vez e espreita o barco de todas as direcções.
As máquinas fotográficas e de filmar já estão a postos para registar o momento.



A velocidade parece agradar-lhe e as horas passam sem que perca o interesse ou a curiosidade. Segue-nos de perto, rola por baixo do barco, de um lado para o outro no que parece um jogo connosco.
Por vezes passa tão perto que chegamos a pensar (apreensivos) se não irá tocar no barco e causar algum dano. Tão perto que sentimos o cheiro do seu sopro - uma mistura enjoativa de peixe com maresia que de agradável tem pouco. No entanto esse pormenor passa-nos ao lado, tal é o entusiasmo do encontro.

São 3 horas de um espectáculo que dificilmente se repetirá.

O dia cai tranquilo, o céu pontilhado de milhares de luzes desponta e um grupo de golfinhos surge a dar o seu olá.

Atrás deixamos um rasto de fosforescência e de repente quatro rasgos fosforescentes surgem em relâmpago enquanto os golfinhos brincam com o barco. Logo desaparecem, para dar lugar a um rasgo, único e massivo, da nossa mais recente companhia. Aparece a bombordo e rápida vira para estibordo, por baixo da quilha. Despede-se com um último sopro e deixa-me com as constelações e algumas estrelas cadentes por companhia, no resto da noite. Só por isto, vale a pena a viagem e os pensamentos inquietos começam a desaparecer.

O dia saúda-nos com calmaria. Sem vento, o Atlântico parece um espelho. Durante todo o dia avançamos a motor. Grupos de baleias cruzam connosco ao longe, certamente incomodadas com a perturbação do barulho.

Nos dias seguintes o vento e o mar voltam a crescer. Apesar de incómodo (não é fácil encontrar uma posição na cabine em que não estejamos sempre a rolar) o aperto no estômago vai diminuindo e as saudades começam a despontar.

Por entre turnos, noites, dias, nascer e pôr-do-sol o barco avança seguro.
No meio do Atlântico é um abrigo para nós, mas também para alguns passageiros inesperados que aproveitam para descansar das suas viagens.

Velejar é uma lição de vida. Aquilo que temos por garantido desaparece tão depressa como surge. O vento uiva lá fora e encolho-me na cabine, assustado com a violência do rugido. O meu turno está prestes a começar e não quero sair lá para fora. Resignado, ponho atrás das costas a vontade contrária à responsabilidade e saio para a noite. Assim, ao relento, o mar, o vento e tudo, não pesam tanto e são mais fáceis de enfrentar.

Isto dura alguns dias enquanto nos aproximamos da costa da Irlanda. O progresso é lento mas seguro.

Mais um dia de sol surge no horizonte e enquanto a temperatura da água desce a velocidade do vento cresce e proporciona-nos um velejar rápido.

A cerca de 100 milhas da costa irlandesa cruzamo-nos com alguns barcos (os primeiros desde o início da viagem). O movimento errático e a velocidade baixa de um, deixa antever algum problema.
Acompanho a sua rota com o olhar, enquanto tento manter a nossa e algum tempo depois vislumbro um pequeno ponto a sobrevoar o outro barco. Mantém-se estático durante mais de 20 minutos e por fim observo algo a ser içado.
É um helicóptero de salvamento. No rádio escuto as comunicações entre este e terra. Aparentemente alguém caiu à água e necessitou assistência.
Nestas águas frias, poucos minutos chegam para a hipotermia acontecer.

Mais tarde, no final da transmissão da previsão do tempo, escutamos um voto de pesar pelas vítimas.
Não é um bom agoiro. Principalmente porque um aviso de "gale" (ventos fortes) foi emitido.

Estamos quase a chegar ao destino e o mau tempo e o cansaço trazem de volta as apreensões mais fortes e deixam os sentimentos mais à flôr da pele. Felizmente o piloto-automático está a funcionar, o que me deixa livre para me poder sentar debaixo do "spray-cover". A vigia assustada dessa noite escura e ventosa é feita na companhia dos primeiros sms trocados com "o mundo".
Por fim acabam as minhas 3h e posso voltar à cabine.

Por entre vento e mar, saltos e batidas, algumas horas passam e ao amanhecer saio cá fora para encontrar toda a gente a disfrutar o mar agitado.

Por alguma razão a apreensão, o susto ficam para trás e uma tranquilidade suave apodera-se de mim, apesar da tempestade e do nevoeiro que se fazem sentir.

Juntos nestas útltimas milhas antes da promessa de terra, avançamos por entre uma montanha de água a espirrar. A chuva miúda e o frio encolhem-nos dentro dos fatos de sobrevivência, mas os sorrisos, esses não esmorecem.

A costa é salpicada de ilhas, rochas e baixios. Há que avançar com cuidado.

Algumas horas e finalmente chegamos ao abrigo do destino.
Um pequena enseada, aguarda-nos, mas não sem antes o motor nos falhar quando tentamos a aproximação à bóia!!
Terminar esta fase da viagem, à vela parece adequado depois de tudo. Rapidamente nos coordenamos e por fim estamos em porto seguro e tranquilo.



Uns dias de descanso vêm mesmo a calhar e os próximos dias adivinham-se cheios de novidades.

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