sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Ponta Delgada (Açores) - Inishturk (Irlanda)

Ao longe, os contornos da ilha desaparecem lentamente com o final do dia.
Às 20h começa o meu turno de 3h ao leme. O primeiro pôr-do-sol é meu!
Enquanto nos afastamos, pequenas luzes acompanham-nos pela noite.

Começo a sentir a ansiedade de me afastar de um porto de abrigo. É normal.

O mar e o vento estão de feição e as horas passam tranquilas. É lua nova e o céu estrelado faz-me companhia. É tempo de relaxar e começar a absorver "isto" onde me meti.

Com a rotação das vigias a cada 6 horas, calha-me também o primeiro nascer-do-sol...

Durante os primeiros dias é tempo de me ir acostumando a esta dança entre o mar e o veleiro. Por vezes o par parece descoordenado nos passos e faz-me sentir apreensivo no sobe e desce que nem sempre deixa o sono vir.

Com o vento a soprar mais forte há que aproveitar e abrem-se as velas... mas isto significa que o barco vai em mais esforço e o por vezes o desconforto das inclinações atingidas não compensa a velocidade e milhas que ganhamos (penso eu...)

Nas horas solitárias de vigia e com o afastar da costa, algumas apreensões teimam em reclamar um lugar cativo... Um contentor perdido! um tronco! uma baleia! mau tempo! uma colisão com outro barco!... tanto que pode acontecer!

O mar algo agitado e um céu cinzento não ajudam a acalmar as primeiras impressões, mas agora não há volta a dar, é "ir em frente" e aproveitar.

Alguns dias depois de partirmos acordamos com um sol resplandecente, um mar tranquilo e vento q.b. para velejar a um ritmo tranquilo. Depois de estes dias sem muita socialização (6h sabem a pouco para repôr as energias e emoções de 3h de turno concentrado) sabe bem partilhar algumas horas na companhia uns dos outros. Um banho de água salgada deixa-nos a todos mais frescos. Mas uma surpresa estava reservada para esse dia.

No mar são normais os encontros com animais curiosos - aves, peixes, golfinhos, etc. Uns, mais que outros, aproximam-se e espreitam de perto. Alguns desaparecem tão depressa como chegam, outros, como as aves, acompanham-nos durante muitas milhas.

O convívio estava a saber bem durante a vigia marcada pelo sol forte. De repente, à ré, um sopro sonoro ouve-se muito perto!

Uma baleia! Encontrou-nos no meio do azul e segue-nos curiosa.

De um lado e de outro do barco, vai aparecendo, respirando tranquila.

Se por vezes se afasta algumas dezenas de metros, logo se aproxima outra vez e espreita o barco de todas as direcções.
As máquinas fotográficas e de filmar já estão a postos para registar o momento.



A velocidade parece agradar-lhe e as horas passam sem que perca o interesse ou a curiosidade. Segue-nos de perto, rola por baixo do barco, de um lado para o outro no que parece um jogo connosco.
Por vezes passa tão perto que chegamos a pensar (apreensivos) se não irá tocar no barco e causar algum dano. Tão perto que sentimos o cheiro do seu sopro - uma mistura enjoativa de peixe com maresia que de agradável tem pouco. No entanto esse pormenor passa-nos ao lado, tal é o entusiasmo do encontro.

São 3 horas de um espectáculo que dificilmente se repetirá.

O dia cai tranquilo, o céu pontilhado de milhares de luzes desponta e um grupo de golfinhos surge a dar o seu olá.

Atrás deixamos um rasto de fosforescência e de repente quatro rasgos fosforescentes surgem em relâmpago enquanto os golfinhos brincam com o barco. Logo desaparecem, para dar lugar a um rasgo, único e massivo, da nossa mais recente companhia. Aparece a bombordo e rápida vira para estibordo, por baixo da quilha. Despede-se com um último sopro e deixa-me com as constelações e algumas estrelas cadentes por companhia, no resto da noite. Só por isto, vale a pena a viagem e os pensamentos inquietos começam a desaparecer.

O dia saúda-nos com calmaria. Sem vento, o Atlântico parece um espelho. Durante todo o dia avançamos a motor. Grupos de baleias cruzam connosco ao longe, certamente incomodadas com a perturbação do barulho.

Nos dias seguintes o vento e o mar voltam a crescer. Apesar de incómodo (não é fácil encontrar uma posição na cabine em que não estejamos sempre a rolar) o aperto no estômago vai diminuindo e as saudades começam a despontar.

Por entre turnos, noites, dias, nascer e pôr-do-sol o barco avança seguro.
No meio do Atlântico é um abrigo para nós, mas também para alguns passageiros inesperados que aproveitam para descansar das suas viagens.

Velejar é uma lição de vida. Aquilo que temos por garantido desaparece tão depressa como surge. O vento uiva lá fora e encolho-me na cabine, assustado com a violência do rugido. O meu turno está prestes a começar e não quero sair lá para fora. Resignado, ponho atrás das costas a vontade contrária à responsabilidade e saio para a noite. Assim, ao relento, o mar, o vento e tudo, não pesam tanto e são mais fáceis de enfrentar.

Isto dura alguns dias enquanto nos aproximamos da costa da Irlanda. O progresso é lento mas seguro.

Mais um dia de sol surge no horizonte e enquanto a temperatura da água desce a velocidade do vento cresce e proporciona-nos um velejar rápido.

A cerca de 100 milhas da costa irlandesa cruzamo-nos com alguns barcos (os primeiros desde o início da viagem). O movimento errático e a velocidade baixa de um, deixa antever algum problema.
Acompanho a sua rota com o olhar, enquanto tento manter a nossa e algum tempo depois vislumbro um pequeno ponto a sobrevoar o outro barco. Mantém-se estático durante mais de 20 minutos e por fim observo algo a ser içado.
É um helicóptero de salvamento. No rádio escuto as comunicações entre este e terra. Aparentemente alguém caiu à água e necessitou assistência.
Nestas águas frias, poucos minutos chegam para a hipotermia acontecer.

Mais tarde, no final da transmissão da previsão do tempo, escutamos um voto de pesar pelas vítimas.
Não é um bom agoiro. Principalmente porque um aviso de "gale" (ventos fortes) foi emitido.

Estamos quase a chegar ao destino e o mau tempo e o cansaço trazem de volta as apreensões mais fortes e deixam os sentimentos mais à flôr da pele. Felizmente o piloto-automático está a funcionar, o que me deixa livre para me poder sentar debaixo do "spray-cover". A vigia assustada dessa noite escura e ventosa é feita na companhia dos primeiros sms trocados com "o mundo".
Por fim acabam as minhas 3h e posso voltar à cabine.

Por entre vento e mar, saltos e batidas, algumas horas passam e ao amanhecer saio cá fora para encontrar toda a gente a disfrutar o mar agitado.

Por alguma razão a apreensão, o susto ficam para trás e uma tranquilidade suave apodera-se de mim, apesar da tempestade e do nevoeiro que se fazem sentir.

Juntos nestas útltimas milhas antes da promessa de terra, avançamos por entre uma montanha de água a espirrar. A chuva miúda e o frio encolhem-nos dentro dos fatos de sobrevivência, mas os sorrisos, esses não esmorecem.

A costa é salpicada de ilhas, rochas e baixios. Há que avançar com cuidado.

Algumas horas e finalmente chegamos ao abrigo do destino.
Um pequena enseada, aguarda-nos, mas não sem antes o motor nos falhar quando tentamos a aproximação à bóia!!
Terminar esta fase da viagem, à vela parece adequado depois de tudo. Rapidamente nos coordenamos e por fim estamos em porto seguro e tranquilo.



Uns dias de descanso vêm mesmo a calhar e os próximos dias adivinham-se cheios de novidades.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

aviso à navegação

Foi sem pensar muito ao que ia que, literalmente, embarquei.

Um curso para fazer na Suécia, uns amigos com um veleiro nos Açores que iam para lá voltar, vontade de fazer algo e... pareceu-me uma boa idéia desde o convite, e o apelo romântico da aventura junto com a vontade/oportunidade de fugir do mundo por uns dias ditaram a decisão imediata na minha cabeça. 

Conjugar os detalhes (viagens de volta, passagens, ausências, datas, etc.) para a concretizar seria algo que teria que resolver depois... pormenores. 

Desde há muito que passo muito tempo no mar embarcado, em trabalho e lazer. Em veleiros porém, a minha experiência limitava-se a umas semanas embarcado na Croácia e à volta de São Miguel/Santa Maria. Se na Croácia ainda tive um baptismo de tempestade durante 4 horas de vagas de 5 metros durante uma noite ventosa e escura como breu - e um coraçãozinho apertado como poucas vezes e a promessa de nunca mais me meter noutra - já nos Açores o bom tempo e a boa experiência apagaram da memória quaisquer reservas que pudesse ter antes de decidir (não tinha, claro!).

Mas adiante. Nas semanas anteriores à partida, o estado de espírito foi moldado por umas semanas prazeirentas na companhia de família e amigos, a tocar, na estrada, em viagem

 (não é todos os dias que se assiste ao vivo ao último espectáculo dos Monty Python! e que se vê de perto parte da colecção recolhida por Darwin na sua viagem no Beagle e amostras recolhidas na viagem do Dr. Livingstone! - obrigado Pedro e Andreia






e passando por alguns dos lugares que mais gosto em Portugal... por isso, o tempo para me preparar para a viagem, foi usado em "modo férias". Como habitualmente... logo se vê!

E assim foi, os dias que antecederam a partida, foram uma corrida entre Londres, Lisboa e Ponta Delgada. Correr para deixar tudo preparado para a minha ausência de algumas semanas. Contas, mochila, equipamento, roupa, comida, compras, livros, música, poucas despedidas e uff... finalmente no barco.

A tarde estava solarenga, o vento soprava de feição e a sensação de "era mesmo isto que queria" instalou-se confortávelmente entre as orelhas.






Mal sabia eu o que me esperava...

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

ao lado do mar


o mar corre aqui ao lado.
há dias que corro com ele. faz-me companhia também o vento.
o tempo, esse... vai e volta como lhe apetece.

darwin disse que não é o mais forte que sobrevive mas sim o que melhor se adapta. contra a minha natureza, calei esta vontade de espaço e paguei com silêncio.
adaptamo-nos, muitas vezes forçados pelas circunstâncias... a diferença está em sucumbir-lhes, ou não.
Há quem seja simplesmente desassossegado. Eu sou apenas desassossegado.

desta vez parti ansioso. carreguei o peso de outras responsabilidades.
como sempre, basta ter os olhos abertos para ver o caminho... e assim cheguei.

era noite. a escuridão e o silêncio, reinavam.

"Oh do barco!!"

alguém saiu. rugas, uma voz rouca e um jeito de quem já correu mundo ao sol e ao sal.
saco pousado, um pouco de ar fresco a cheirar a cais e poucas palavras trocadas depois, o cansaço chamou-me.

depois de uma noite agitada, o nascer do sol cumprimentou-me pela escotilha.

últimos preparos, despedidas e ala... que o mar aguarda.

são horas a ver azul, entregue a mim. entregue às conversas simples dos marinheiros/pescadores que me levam a viajar para além do horizonte, até às suas histórias.
Desta vez, visito Marrocos, o Senegal, Malta, Líbia, Madagascar, as Maurícias, as ilhas Reunião... tudo ao largo das Baleares.
Ao fim de uns dias, o corpo já se adaptou a esta dança que entontece e embala.

É lá em cima, por cima da ponte, que tudo se agita mais... mas também é onde a vista é melhor, o vento corre mais fresco e o sol bate mais forte.
É lá que mais gosto de passar as horas.

Para trás, deixo uma crise que não é minha. Ainda que por pouco tempo, é isto que me faz ser quem sou e que não me deixa esquecer que a vida é mais que o nosso cantinho.
É sorte ter casa, sofá, dinheiro, comida, carros, férias, etc.? Há quem acredite piamente nisso. Há até quem tenha medo que não seja assim.

Acordar ao som do café a ser feito, bambolear para fora da cama até lá fora onde o sol e o mar nos saudam entre um piscar de olhos ensonado e uma lufada de vento fresco.

Sorte é estar aqui!



sexta-feira, 8 de junho de 2012

No ar... (entre Malé e Londres) 12.09.2011


Acordei.
As despedidas foram há um bocado.
Entre jogos, risos, cerveja fresca e um sentimento por definir (talvez a saudade não seja tão exclusiva da alma lusa como queremos crer) passaram-se as últimas horas com estes amigos que, sem saberem, foram uma pequena família.


Houve abraços, desejos de felicidade, sucesso e promessas de reencontro. Um dia quem sabe?







O quarto, já vazio de mim, mas tão cheio de lembranças e momentos, recebeu-me. Arrumadas as últimas caixas, ao som de música, esperava-me o último descanso (pouco) antes da partida.













Levantei-me.
Durante a noite, a chuva e o vento correram fortes.


Um duche rápido despertou-me o corpo mas, os sentidos, esses ainda não estavam prontos para acordar.
Sacos e mochilas fechados. Um último olhar em redor às paredes que me acolheram e a despedida silenciosa terminou com o fechar da porta.

No cais esperavam-me os últimos abraços e à hora marcada embarquei sozinho, acenando, ainda adormecido.


Nuvens escuras carregadas dançavam com o vento forte por par. O barco fez-se ao mar, fustigado pelas ondas que o perseguiam e, balançando com as ondas, comecei a acordar lentamente.

Lembro-me das primeiras vezes que "apanhei mar"... apesar de tentar manter a calma por fora, por dentro assustava-me a agitação desordenada das vagas. Agora que nos conhecemos melhor... agora diverte-me esta proximidade familiar com a Natureza.

Em Hanimadhoo (ilha local servida por um aeroporto) esperei pelo vôo que me iria deixar mais perto (ou mais longe) da civilização, como eu antes a conhecia.
Enquanto esperava deu tempo de trocar umas momices com um sorridente bebé, sentado perto de mim. É engraçado como esta linguagem tão universal dos sorrisos consegue ultrapassar as barreiras da idade e idioma com tanta facilidade.

Nem o vento acalmou, nem as nuvens escuras dispersaram... nesse quadro cinzento de tempestade, embarquei numa relíquia da aviação que, por entre as sacudidelas e safanões, atravessou as nuvens densas e opacas e me levou de volta a Malé.


Uma corrida, uma pequena lembrança local (para poupar os ombros carregados), uma troca de mensagens "assertiva" e mais uma página que se vira para não tornar.
As horas seguintes passaram entretidas a voar em filmes e levaram-me tranquilo em direcção ao "velho continente" e a Londres.
O reencontro não foi o choque que pensei. Foi apenas um retomar de uma vida, não interrompida mas sim, contínua e agora, talvez mais coerente e lúcida.
Pelas saudades e proximidade geográfica, permiti-me a uns minutos (ao telefone) onde escutei a língua materna, na voz querida de alguns amigos. Depois deixei-me envolver pela cidade e fomos beber uma Sagres e petiscar qualquer coisa... sem caril!!
Com o Santos e a Mariana saciei a sede de falar e escutar o português. Com a Alice e o Gaio, a de tocar música!
Fui levado a passear e, sentado numa pequena esplanada de rua, saboreando um cappucino servido com um sorriso bem português, apercebi-me que o mundo (o que eu conheço) não mudou ou cresceu nos meses que dele me ausentei... ou melhor, não mudaram nem cresceram as pessoas. E apesar de estar ali tão próximo, senti-me longe.
 Pela manhã saudou-me uma paisagem solarenga pintalgada de sons de uma cidade grande... tão diferente da vista tropical da minha janela dos últimos tempos.

De sacos e mochilas às costas embrenhei-me na azáfama matinal dos outros que, quais formigas, corriam na sua labuta diária. De olhos e ouvidos bem abertos, diverti-me por saber que em breve deixaria para trás mais este tumulto de gente.
No aeroporto troquei um sorriso pelo excesso de bagagem com uma simpática alemã (loira a preceito) que, com esta surpresa, me relembrou que há pessoas e há gente...
Ainda houve tempo para me cruzar com mais um português a trabalhar no balcão da bagagem fora de formato (podemos ser pequenos em geografia mas, ainda estamos por todo o lado) e assim, divertido pelos episódios da manhã, fui de férias, pensando em que outras surpresas iria tropeçar.

        Seis meses tinham passado desde então. 
Foram meses de muita aprendizagem. Muita da qual aconteceu sem dar por isso mas, assim é a vida. Vive-se no presente, segue para o futuro e nunca volta ao passado e valem-nos as recordações..
Trouxe na bagagem (aquela da alma) mais o que com que cheguei. Talvez por isso me sinta mais leve...

23.09.2011 (Split, Croácia)








segunda-feira, 15 de agosto de 2011

azul

Profundo. Forte. Carregado. Límpido. Cristalino. Vibrante...







Ainda antes de chegar, já a côr me entrava pelos olhos dentro, vista do alto.

E enquanto a luz do dia acordava de mansinho e se espreguiçava no horizonte, era o azul que me prendia o olhar e me perdia na sua imensidão.

 


Cada vez que mergulho nele, afogam-se os medos e os desassossegos. Desaparecem as preocupações e desfazem-se as dúvidas.
Tudo se torna claro... fácil.
Fica-me a tranquilidade e a paz...


Por isso, perdoem-me a escassez de palavras e o devaneio monocromático que, hoje partilho...


Azul...


... eléctrico

... escuro

... límpido

... cristalino

... curioso




... puro

... ao fundo

... vivo

... sentido






terça-feira, 31 de maio de 2011

Zen

Quando era pequeno as festas de anos eram, no meu entender simples de criança, uma oportunidade de receber presentes.

Olhando para trás, hoje, especialmente depois de ter passado já 3 meses (não é tempo nenhum, bem sei) nesta ilha tão pequenina e remota, onde nem a televisão liguei ainda uma vez que fosse, dou conta que como "ocidentais" (que a geografia é relativa), o materialismo consumista nos é incutido dia após dia, desde pequeninos.

No meu tempo (hoje posso usar expressões destas...) eram os Legos, os Playmobil, os carrinhos, os soldadinhos e berlindes, depois o Zx Spectrum e os jogos de cassete... A bicicleta, os ténis de marca e tantas outras bugigangas que nos enchem os cestos de brinquedos e recordações da nossa infância, cheios de coisas que mais tarde se transformam em caixotes esquecidos empilhados na arrecadação e garagem.

Hoje, crescido e já um "homenzinho" (nas palavras do meu irmão) não me lembro dos Legos todos que tive, dos bonecos que tive (excepto alguns que eram companheiros inseparáveis), dos jogos todos, dos ténis, dos carrinhos, etc.

Lembro-me sim, dos passeios de bicicleta com o meu irmão e amigos, na barragem, das pescarias ao lado do meu avô e do meu pai, das esfoladelas nos joelhos e arranhões tratados com beijinhos carinhosos pela minha mãe, de acordar cedo para amassar pão com a minha avó. Lembro-me das corridas doidas, dos trambolhões, das mil e uma coisa que inventamos para fazer asneiras com os meus primos, dos jogos de escondidas e apanhada com os companheiros de recreio...
Lembro-me das árvores que trepei.
Lembro-me dos desenhos que fazia na escola.
Lembro-me do sorriso "Cândido" da minha professora primária, dos seus cabelos grisalhos e do olhar ríspido que conseguia fazer quando não nos portávamos bem. Lembro-me das únicas reguadas (merecidas) que foram dadas em 4 anos de escola primária naquela turma - a mim, claro!
Lembro das birras, das fitas, das palmadas, para mim completamente injustas na altura e que, lado a lado com tantos outros exemplos bons, tiveram o condão de, bem ou mal (julgarão vocês), me tornarem na pessoa que sou hoje.

Lembro-me das guerras de almofadas com o meu irmão. Lembro-me de partir a cabeça e da lasca que deixei na ombreira de mármore da porta do meu avô.
Lembro-me das brigas e implicações com o meu irmão. Lembro-me de partir pratos e copos.

Lembro-me das viagens de carro que me fizeram ganhar o gosto irrequieto por conhecer mais para além da minha porta e das músicas que ouvia no caminho e que me despertaram este amor que tenho pela música.


Lembro-me dos livros que me transportavam em sonhos acordados, para mundos mágicos e reais ao mesmo tempo. Ainda hoje têm esse efeito em mim.


Lembro-me dos ataques de parvoíce em família. Dos risos que se metem debaixo da pele e nos fazem tremer o corpo em gargalhadas.

Lembro-me dos amigos que fiz e tenho e dos momentos enriquecedores e experiências que tive a sorte de partilharem comigo.
Dos jantares, dos picnics, da parvoeira pegada que se gera à volta de uma mesa de comida boa.

Lembro-me da música que tive a felicidade de aprender a tocar e que hoje tento partilhar.
Lembro-me dos abraços e dos beijos que dei e me deram.
Das lágrimas derramdas, das dores.
Lembro-me dos nascer do Sol e das noites quentes de lua cheia, dormidas ao relento debaixo de um céu de estrelas.

Lembro-me de sustos e trovoadas, chuvas e escaldões...
Lembro-me de subir uma montanha de mota... à luz da lua cheia e de me sentar à vista de uma lagoa de fogo a conversar. De viajar à chuva e ao vento e sentir-me ensopado e mesmo assim sorrir como se fosse a melhor viagem do mundo.

Lembro-me de histórias partilhadas em bancos de jardim sobre velhinhos pedintes em terras longínquas que um dia, sem saberem porquê receberam das mãos de uma menina o maior e mais desprendido presente que ela podia dar... tudo!

Lembro-me dos animais que foram meus companheiros de folias e que me ensinaram tanto.

E de de tantas, tantas outras coisas, situações, pessoas, acontecimentos...
Uns recentes, outros nem tanto...

Quando era pequenino, diziam-me que tinha memória de elefante... e hoje sinto-me o maior sortudo por me poder lembrar.

O que tive em menino, de presentes materiais, não tive hoje.
Com a idade, os festejos perderam a importância... os presentes, esses ganharam... mas de outra natureza.

Hoje, sem o saberem, os meus amigos deram-me o maior presente que alguém pode receber.

Deram-me o seu tempo, atenção e carinho.

Zen

domingo, 15 de maio de 2011

Dhonakulhi

Caminhar sozinho numa cidade estranha, sem raízes ou destino, tem o efeito de me tornar mais atento ao que me rodeia. E assim, em "modo de observação", voltei ao café onde dali a pouco tempo o Rasheed me viria buscar de regresso ao aeroporto para a minha última ligação aérea antes do destino final - a ilha de Dhonakulhi.

O receio da comida estranha e potencialmente prejudicial ao meu estômago ocidental levaram-me a optar por uma sandes de atum e uma água engarrafada.

Sentei-me acompanhado do meu caderno, decidido a conhecer um pouco mais deste mundo que, a cada olhar,  abria para mim janelas com novas paisagens humanas.

Sem dúvida que os pequenos pormenores e vivências da vida local constrastam com a minha bitola europeia.
Há aqui uma outra maneira de viver os dias. Apressados, sem dúvida, ou não estivéssemos numa cidade mas, ao mesmo tempo nota-se a dolência característica das terras banhadas por luz, sol e calor. E nisso encontrei semelhanças com o nosso próprio "lusitanismo"... O sorriso tranquilo vem sempre seguido de uma expressão que transmite a falta de urgência... mesmo para as coisas urgentes!
Agora que penso nisso, talvez seja por isso que, terras assim são destinos de férias por excelência - quem vive na azáfama do stress diário precisa da exposição forçada a um ritmo mais lento ou, de outra forma não descansa.

A ociosidade, como em outras sociedades patriarcais, parece ser uma prerrogativa reservada aos homens e por isso, à minha volta no café, não vejo senão homens.
Uma coisa que me chamou a atenção foi que, embora se sentem vários a uma mesma mesa, ao contrário do que acontece nas nossas tascas de aldeia, não se geram "conversas de café"... O convívio presencial é uma falsa imagem. Aqui impera a tecnologia telemóvel. Não consigo vislumbrar uma pessoa em meu redor que não esteja com uma das orelhas ocupadas por um telefone... Falem-me em comodismo numa ilha-cidade com menos de 6 km2...

A hora do vôo aproximava-se e estava na altura de regressar ao aeroporto.
Aí chegado sou informado que houve uma alteração no vôo e que este estava a acabar de sair (?!?!?!)
Aparentemente houve uma emergência médica numa outra ilha e o horário do vôo foi antecipado uma hora.
"Mas avisaram?" "Estamos a avisar as pessoas desde as 6:30h da manhã"...
O meu azar foi que quem recebeu o aviso no resort, se esqueceu de avisar quem estava a tratar da minha viagem... Surpreedente como a presença portuguesa se faz notar tantos séculos depois da nossa passagem por estas paragens.
"E quando é o próximo vôo?"
"Às 2:30h da manhã" !!

Longas horas de espera (mais de 10h!!!) aguardavam-me...

O Rasheed conseguiu-me descobrir um café onde pousei as coisas, pedimos um chá e liguei o computador para poder ligar-me ao mundo.
Durante algumas horas ocupei o tempo a actualizar os amigos que encontrava online mas, ao fim de algum tempo impunha-se uma mudança...
Deambulei pelos recantos da ilha-aeroporto, li, caminhei... observei o vai-vem de pessoas. Turistas do mundo inteiro. Uns a chegar, outros a partir.
Nuns vê-se a alegria estampada num rosto cansado de muitas horas de viagem. A expectativa de umas férias exóticas. Uma lua-de-mel de sonho...
Noutros, a conformismo inevitável de um regresso cedo demais espelha-se sem sombra de dúvidas...
Caminho para trás e para diante, leio mais um bocado. Escrevo algumas anotações... esqueço-me de tirar fotos.

A noite caiu entretanto e o caloroso pôr-do-sol é pontuado aqui e ali, não com gaivotas mas, com a presença de morcegos frugíveros (Pteropus vampyrus) - o maior morcego do mundo, presença normal nestas paragens, conhecidos como "raposa-voadora".

 
(foto: Dave Behrens)

Passado algum tempo, o Rasheed pergunta-me se gosto de comida do Sri Lanka e picante... "Nunca experimentei mas, estou disposto a experimentar, claro!" respondo "mas, calma com o picante."

"Então vem comigo..." diz, sem adiantar mais.

Sou levado por entre os edifícios nas traseiras do aeroporto... até à cantina do staff.
Aí o Rasheed diz-me: "Vais provar este sumo de melancia! É óptimo para aliviar o calor".
Todos os avisos do médico sobre as comidas frescas e dos potencias perigos  para a saúde saltam-me imediatamente à memória.
Imagino algumas desculpas para recusar educadamente o convite tão apetitoso.
Ao mesmo tempo a fome e a vontade de mandar os cuidados às urtigas conjuram como anjos e demónios empoleirados no meu ombro...
Ganham os demónios da fome e a vontade de viver todas as experiências a que tenho direito. Afinal não é todos os dias que somos levados a comer cozinha local com quem sabe onde ir!
O sumo era refrescante como prometido... gelado, doce... e a comida... enfim a comida era muito saborosa.

Cothuroshi foi nome que aprendi. O que era exactamente não sei. Veio com um ovo estrelado em cima do que parecia massa cozinhada com vegetais, caril, canela e outras coisas que não identifiquei.
Os sabores combinavam tão bem, acompanhados pelo sumo que durante alguns minutos, a conversa parou e abandonámo-nos ao simples prazer de comer e saborear. Ainda bem que pedi sem picante, porque mesmo assim fiquei com os lábios a arder. Nós usamos o sal... eles usam o picante em tudo... confesso que, agora, passados alguns meses, começo a entender o apreciar da comida com picante... É toda uma nova paleta de sabores que se abre à descoberta dos sentidos.

Depois do jantar foi-me oferecido um fruto seco - noz de areca (http://en.wikipedia.org/wiki/Areca_nut) - para mastigar. O ritual é simples. Embrulha-se o fruto seco que, é apresentado cortado em fatias, numa folha fresca de betel (http://en.wikipedia.org/wiki/Betel) e junta-se um pé de cravinho. A princípio a boca seca mas, depois um leve sabor mentolado espalha-se e o hálito fica fresco. Um final perfeito para uma refeição. 
Este é um costume muito comum no Sul da Ásia. É normal ver pessoas que mascam este fruto todos os dias e que por isso ficam com as gengivas e os dentes de um tom avermelhado...

Dirigimo-nos a um café para tomar qualquer coisa... Mais uma vez, seguindo o ditado - "em Roma sê romano - deixei-me levar pela curiosidade e vontade de experimentar os costumes locais e por isso pedi o mesmo que os meus anfitriões. Desta vez um chá com leite.


 
Nesta altura o Rasheed pediu-me para tocar um pouco o meu bandolim, pelo que não me fiz rogado e satisfiz-lhe a curiosidade.
A música continua a ser um aglutinador global... mas foi com alguma curiosidade que vi algumas pessoas chegarem-se mais perto para ouvirem. Por momentos esqueci o cansaço de lado e deixei-me levar pelos sons que os meus dedos cantavam.

Mais uns dedos de conversa, umas piadas e mais umas horas passaram.
O tempo de espera estava a chegar ao fim e dali fomos para o check in dos vôos domésticos.
Apenas mais 4 outros passageiros se juntaram áquela hora para o vôo que me levaria para a ilha de Hanimadhoo, onde teria um barco à minha espera para me levar para Dhonakulhi.

Burocracias, tratadas, passaporte visto, bagagem pesada (e que peso... ) e despachada e depois de uma meia hora na sala de espera, embarcámos.
De noite, as Maldivas são um pontuado de luzes, espalhadas aqui que fazem lembrar um céu estrelado invertido.

Por esta altura o cansaço apoderou-se de mim e nem a música que me fazia companhia me manteve acordado.

Acordei ao aterrar.
Uma pista a correr lado a lado com o mar e praticamente à mesma altura que este.
Dali até à saída foram 5 minutos...
Esperava-me a Sandy e a tripulação que me levaria a Dhonakulhi.


Durante a viagem de barco, por entre a conversa, as apresentações e as primeiras impressões, pude apreciar o céu estrelado (desta vez do lado certo).
Estendi o meu braço para fora do barco para apanhar alguns salpicos.
A água do mar era quente, acolhedora. Levei a mão à boca para sentir o sal deste mar...

Depois a chegada, às 4:30h da manhã... dois dias depois de sair de Portugal.

Duas mensagens para sossegar e partilhar o momento e adormeci.